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Tetraplégico, ex-F1 lembra acidente no RJ e se compara a "Intocáveis"

Philippe Streiff perdeu movimentos após acidente no Brasil em 1989 e lamenta: socorro não foi adequado

15 mar 2013 - 14h33
(atualizado às 15h30)
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Philippe Streiff, 57 anos, poderia ter motivos para guardar mágoas do Brasil, mas descarta qualquer tipo de arrependimento pelo acidente que quase lhe tirou a vida, no Circuito de Jacarepaguá, em 15 de março de 1989. O francês vivia o auge da carreira e pilotava para a AGS em um teste privado de pré-temporada da Fórmula 1: uma quebra na suspensão traseira do carro o fez capotar duas vezes sobre o santantônio; ele sofreu rupturas no pescoço e na medula e analisa que ficou tetraplégico devido ao atendimento médico ruim, o qual detalha em entrevista exclusiva ao Terra.

Passados 24 anos desde o acidente, Streiff segue ligado aos carros. Ele é conselheiro técnico de segurança de estradas do Ministério de Ecologia da França e tem a missão de facilitar o acesso de pessoas com mobilidade reduzida à carteira de motorista. "Condição primordial para a preservação da autonomia, mas também para a reinserção sócio-profissional", ressalta.

Ex-piloto de F1, ele atualmente dirige um BMW GT5 equipado com um mini joystick. O carro, sem pedais nem volante, foi criado com a própria contribuição dele, em 2007, em projeto apoiado pelo governo nacional no Centro de Recursos e de Inovação de Mobilidade e Handicap (CEREMH), situado em Versailles-Satory.

Para as demais atividades, Streiff conta há 12 anos com um "auxiliar de vida", conforme define o chadiano Nadji. Ele compara a relação com o assistente ao da dupla formada pelos atores François Cluzet e Omar Sy em Intocáveis, filme francês baseado em fatos reais que foi o mais visto do país em 2011, com mais de 17 milhões de espectadores. A película dirigida por Olivier Nakache e Éric Toledano foi indicada ao Globo de Ouro de 2013 de melhor filme estrangeiro, sendo derrotado por Amor, também da França. 

Ao lado de Nadji, o ex-piloto acompanhou in loco recentemente o Grande Prêmio de Abu Dhabi. Ele viaja também para assistir a algumas provas da Fórmula 1 na Europa e acompanha assiduamente a categoria a qual deixou com 53 corridas disputadas entre 1984 e 1988. A mais marcante ocorreu em Adelaide, em 1985, quando cruzou a linha de chegada com uma Ligier praticamente com três rodas apenas, após se envolver em acidente com o companheiro de equipe, o também francês Jacques Laffite.

<p>Streiff dirige carro equipado com mini joystick e trabalha para facilitar o acesso de pessoas com mobilidade reduzida à carteira de motorista</p>
Streiff dirige carro equipado com mini joystick e trabalha para facilitar o acesso de pessoas com mobilidade reduzida à carteira de motorista
Foto: Arquivo pessoal/Philippe Streiff / Divulgação

Streiff se arrastou na pista pela última volta até terminar a prova no terceiro lugar, a 1min28s536 do vencedor, o finlandês Keke Rosberg, e a 46s130 de Laffite. Foi o único pódio da carreira do francês, a qual acabaria no acidente no Rio de Janeiro. Nada que acabasse com a alegria de viver do ex-piloto, que é casado com Renée e tem dois filhos: Thibaut e Romain.

Terra - A Fórmula 1 viveu em 2012 um momento histórico com a primeira vez em que sete pilotos diferentes venceram as sete primeiras corridas do ano. Você enxerga algum paralelo entre esse equilíbrio e o da década de 1980, na qual você correu, considerada o período áureo da categoria?

Philippe Streiff - A temporada 2012 foi fantástica. À parte as três ou quatro últimas escuderias, as performances dos outros monopostos foram muito próximas, o que explica a divisão dos pontos entre os pilotos, todos talentosos. Havia seis campeões do mundo e, na realidade, eu conheci bem cinco deles, já que organizei, depois do meu acidente, o Masters de kart indoor de Paris-Bercy (Michael Schumacher foi campeão da prova em 1994 e 1996 na categoria stars; Jenson Button em 1997, Fernando Alonso em 1998, Lewis Hamilton em 2000 e Sebastian Vettel em 2001 na categoria júniors). Todos esses jovens já tinham muito talento no karting. Na minha época, era parecido com pilotos como Alain Prost, Ayrton Senna, Nigel Mansell, Nelson Piquet... mas havia muito mais diferença entre os veículos e os motores turbos, que passavam dos 1.000 cavalos. Havia também vários fornecedores de pneus e não apenas um, como nos últimos anos.

Terra - O que você acha do desempenho dos pilotos franceses Charles Pic, Jean-Éric Vergne e Romain Grosjean? A França não teve representante na F1 em 2010 e 2011 e agora a situação está mudando. Trata-se de uma nova era para o país?

Philippe Streiff - Nos anos 1970 e 1980 nós tivemos a chance de ter um patrocinador petrolífero nacional (ELF), que me ajudou a chegar à Fórmula 1. Em 2002, a marca foi comprada pelo grupo Total, que não recomeçou com a "filial ELF", a qual havia sido colocada em prática no Circuito de Le Mans para os jovens franceses. Sebastién Bourdais foi o último dessa filial com, antes deles, Olivier Panis. Deveu-se esperar 2012 para ter de novo três pilotos franceses na F1: Grosjean, que é patrocinado pela Total; Vergne, piloto da filial da Red Bull depois do título de Fórmula 3 Britânica; e Pic, oriundo da nova filial na França, graças à empresa Arnaud Lagardère. São verdadeiras esperanças que ainda estarão na categoria em 2013.

* Confirmado como titular da Marussia no fim de fevereiro, Jules Bianchi será o quarto francês na F1 em 2013, ao lado de Pic (Caterham), Vergne (Toro Rosso) e Grosjean (Lotus).

Terra - Sobre o Masters de kart, você começou a organizar a competição em 1993 e conseguiu reunir Alain Prost e Ayrton Senna. Foi muito difícil juntar dois rivais históricos como eles?

Philippe Streiff - Na realidade, Prost foi tetracampeão do mundo em 1993 no volante de uma Williams-Renault ELF. Eu era piloto da ELF e então, quando saí de meus três anos de hospitalização e reeducação, Prost me deu a garantia por solidariedade, e Senna não podia se recusar a participar de um evento tão grande. Além disso, eram dois apaixonados pelo kart e foi para eles um retorno às origens de suas respectivas carreiras. Isso me permitiu perenizar o evento por quase 10 anos e, com meus filhos, eu reorganizei o Masters em 10 e 11 de dezembro de 2011 no Palácio de Bercy (em Paris). Foi a primeira competição de kart 100% eletrônica do mundo. Nós repetiremos a prova em dezembro de 2013 e 2015.

<p>Streiff guia para a Tyrrell no GP do Brasil de 1987, em Jacarepaguá</p>
Streiff guia para a Tyrrell no GP do Brasil de 1987, em Jacarepaguá
Foto: Getty Images
Terra - Sua carreira na F1 é muito lembrada pelo terceiro lugar no GP da Austrália de 1985, quando você terminou a corrida com praticamente três pneus apenas. Seria este o término mais sensacional da história da categoria? Foi o melhor desempenho de sua vida após largar em 18º com uma Ligier?

Philipp Streiff - Foi um dos fins de corrida mais espetaculares que conheci. Na minha época, quando eu era piloto de testes da Renault, (a melhor prova) foi o GP de Mônaco de 1984, quando Senna atacava o líder Prost sob uma chuva torrencial no volante da Toleman-Hart. Pena que a corrida foi paralisada, senão Ayrton teria ganhado o seu primeiro GP em sua primeira temporada! Um outro GP me marcou: o de Mônaco em 1996, quando Panis ganhou com a Ligier-Honda partindo do quarto lugar do grid! Sobre minha prova em Adelaide com uma Ligier-Renault, eu era o terceiro colocado atrás de meu companheiro, Laffite, e queria ultrapassá-lo ao fim da reta da penúltima volta. Por azar, ele frenou a 150 m em vez de 120 m e eu toquei minha roda contra a dele. Tive a sorte de terminar em terceiro com três rodas!

Terra - Você atingiu o seu companheiro, o que poderia ter feito a Ligier perder um pódio certo com dois pilotos. Como a equipe reagiu depois disso? Você chegou a ter a carreira sob risco por causa desse acidente?

Philippe Streiff - Guy Ligier, o proprietário da escuderia, não estava nem de longe contente, assim como o chefe Gérard Larrousse. Isso poderia ter cortado minha carreira na F1. Mas eu tinha substituído Stefan Bellof no GP anterior em Kyalami, na África do Sul, com uma Tyrrell-Renault ao lado de Martin Brundle. Na verdade, a Ligier, que só tinha patrocinadores franceses do Estado como Renault, Gitanes e ELF, não tinha a autorização do governo francês para ir à África do Sul em razão do apartheid. Eu já tinha, por sorte, assinado um contrato com Ken Tyrrell para 1986 e 1987.

Terra - Falando sobre o acidente no Brasil. Você tem algum arrependimento quanto ao que aconteceu? Muitas coisas foram ditas sobre a qualidade do atendimento que você recebeu. As pessoas que o ajudaram não estavam preparadas? 

Philippe Streiff - Não me arrependo de ter ido fazer esses testes no Rio de Janeiro para preparar a temporada de 1989 com minha equipe AGS-Ford. Os ensaios se anunciavam prometedores, depois dos resultados obtidos em 1988. Contudo, é verdade que o socorro não esteve à altura e que os comissários de pista brasileiros não estavam preparados para esse tipo de acidente. Além disso, o material médico não era o apropriado - não havia colar no pescoço nem colchão rígido para imobilizar meu pescoço e minhas costas - e eles tiraram meu capacete sem cortá-lo. Eu fiquei tetraplégico mais por causa do mau tratamento do que por causa do acidente.

Terra - Depois do acidente, quanto tempo você demorou para ver outra corrida de Fórmula 1? Foi muito difícil fazer isso?

Philippe Streiff - Na verdade, pouco tempo depois do meu acidente, eu assisti aos Grandes Prêmios da temporada 1989 na TV e comentei para a TF1 a temporada 1990. Portanto eu permaneci sempre apaixonado pela F1.

Terra - Você concorda que a F1 se tornou mais segura depois do seu e de outros acidentes, especificamente depois da morte de Senna no GP de San Marino de 1994?

Philippe Streiff - Sim, houve uma grande evolução na Fórmula 1 nos anos 80, depois dos acidentes de Didier Pironi em 1982 e de Jacques Laffite em 1986, com os crash tests frontais e laterais dos chassis. Nós então chegamos aos chassis em carbono, porém os avanços mais importantes foram feitos depois do meu acidente, em 1989, com os crash tests do arco de segurança; e a partir dos acidentes de Roland Raztenberger e de Ayrton Senna, em 1994, com a obrigação dos pilotos de utilizar um Hans, a fim de evitar o corte da medula e limitar as amplitudes do movimento da cabeça em caso de acidente.

Terra - Você está ciente do fim do Circuito de Jacarepaguá? A pista foi destruída porque o Parque Olímpico dos Jogos do Rio de Janeiro 2016 será construído no mesmo local.  

Philippe Streiff - Eu sabia que o circuito foi proibido para a F1 depois do meu acidente, porque era muito ondulado. Apenas as motos e os GT puderam utilizá-lo. Mas eu não sabia que seria fechado definitivamente para acolher o Parque Olímpico dos Jogos do Rio de 2016.

Terra - Há vários exemplos de determinação e recuperação no esporte hoje em dia como Alex Zanardi, que venceu o ouro paralímpico no ciclismo de mão depois de ter ficado paraplégico em um acidente na Fórmula Indy. Você o conhece, o que pensa da nova carreira dele?

Philippe Streiff - Eu conheço bem o Zanardi, que ganhou o Masters de kart em 1998, quando corria na Fórmula 1 pela Williams. O que ele realizou depois com as duas pernas amputadas é fantástico! As medalhas olímpicas em Londres, em 2012, mostram que ele foi capaz, uma vez mais, de superar a deficiência, depois de ter corrido no WTCC com uma BMW adaptada (freios e acelerador no volante).

Terra - Como você encarou a nova condição física e como tratou o assunto na família, já que naquela época você tinha dois filhos pequenos?

Philippe Streiff - Os primeiros anos depois do acidente foram os mais duros, contando o fato de que eu tinha duas crianças, Romain e Thibaut, de 5 e 3 anos. Ao mesmo tempo, é isso que me deu a força e a vontade de reagir na vida, apesar da minha deficiência muito aguda. Foi também Frank Williams, que se tornou tetraplégico três anos antes de mim, depois de um acidente em 1986, que me mostrou o caminho me provando que o mundo da F1 era uma grande família. É por isso que eu tive a ideia, sobre meu leito no hispital, de organizar o Masters de kart com os pilotos de F1. Bem mais tarde, nos anos 2000, o presidente da República francesa, Jacques Chirac, me confiou a missão de me ocupar das condições de vida das pessoas deficientes na França e uma grande lei foi votada em 11 de fevereiro de 2005. A França está se aproximando dos países norte-americanos e nórdicos, notavelmente em termos de acessibilidade. Desde 2007, em colaboração com a CEREMH (Centro de Recursos e de Inovação de Mobilidade e Handicap), centrei-me na volta à condução de pessoas com mobilidade reduzida, em particular tetraplégidos, com o sistema de joystick que utilizo no meu BMW GT5. A Internet igualmente melhorou o vínculo social entre os deficientes e o resto da população. Eu espero dar o exemplo a outras pessoas doentes ou deficientes, que estão ainda no hospital e em reeducação e que não tinham o ânimo...

Terra - Há um filme francês (Intocáveis) que tem feito muito sucesso no Brasil, baseado na verídica história de um tetraplégico interpretado por François Cluzet, que procura um assistente que o trate como uma pessoa normal e não sinta pena por ele. Você já viu o filme? Acredita que filmes como esses são importantes para mudar o modo como as pessoas tetraplégicas são vistas?

Philippe Streiff - Sim, evidentemente. Vi o filme duas vezes com meus dois ajudantes, auxiliar de vida e assistente profissional. Eu conheço bem o personagem interpretado por Cluzet, Philippe Pozzo de Vorgo, que mora agora em Essaouira, no Marrocos. É verdade que é muito difícil ser tratado como um homem "normal" pelas outras pessoas e, sobretudo, recrutar bons auxiliares. Eu tenho a chance, como em Intocáveis, de ter a meu lado Nadji, originário do Chade, há quase 12 anos. É certo que este filme, que fez a volta ao mundo com sucesso, já fez mudar o olhar das pessoas sobre os deficientes.

Dê uma volta virtual no circuito de estreia da F1:
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Foto: AFP

Fonte: Terra
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