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Bastidores da Série D: emoções fora de campo

4 jun 2013 - 12h10
(atualizado às 13h22)
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Às vésperas da Copa das Confederações, a pouco mais de um ano da Copa de 2014 e no início do Campeonato Brasileiro de 2013, o repórter da BBC Brasil Daniel Gallas visita um mundo distante dos holofotes e do glamour do futebol de elite: a Série D, como é conhecida a quarta divisão do Campeonato Brasileiro.

Com números impressionantes, o torneio mostra um pouco da realidade da grande maioria dos times do país: trata-se da única divisão do campeonato nacional com representantes de todos os 27 Estados brasileiros, com 40 equipes.

Nesta e na próxima semana, Gallas viaja pelo país acompanhando uma das equipes, o jovem Paragominas Futebol Clube, do Pará, time registrado na CBF há menos de um ano.

Enquanto colhe material para uma série de reportagens que serão publicadas pela BBC após o campeonato, que termina em outubro, Gallas também estará enviando suas impressões diárias, em tom de blog, sobre os bastidores dessa viagem e de suas experiências.

Veja abaixo os relatos do repórter:

Emoções fora de campo - 04/06

Quase tão emocionante quanto acompanhar uma partida de futebol da série D é ver o que acontece do lado de fora do gramado.

A quarta divisão é a porta de entrada no sistema do futebol brasileiro para qualquer clube. A maioria dos Estados brasileiros têm direito a uma vaga, que fica com o melhor time do campeonato estadual daquele ano (excluindo-se todos os clubes daquele Estado que já estão nas Séries A, B ou C).

Para os jogadores e dirigentes de futebol, fazer um bom estadual - disputado no primeiro semestre - é o que decide se eles terão emprego de junho em diante. Tome-se o exemplo do Estado do Pará, onde oito times disputaram o Estadual até o mês passado. O campeão paraense, o tradicional Paysandu, já está na segunda divisão do campeonato brasileiro, devido a campanhas feitas em anos anteriores. O mesmo acontece com o Águia de Marabá, que está na Série C.

Os demais seis times do estadual do Pará disputavam uma vaga na Série D. O Paragominas FC, time que chegou à final com o Paysandu, fez surpreendente campanha em seu segundo ano de atividade, e ficou com a vaga.

Os cinco times que sobraram - Remo, Tuna Luso, Santa Cruz, Cametá e São Francisco - já não têm mais o que disputar em 2013. Muitos fecharam suas portas este ano, dispensaram treinadores, jogadores e funcionários e, com sorte e algum investimento, poderão tentar de novo a partir de janeiro de 2014. A rotina da maioria é: cinco meses de futebol, sete meses de desemprego.

"Se você quiser, eu te digo agora mesmo o nome de cem amigos meus que acabaram de ficar desempregados", diz Cacaio, ex-atacante do Flamengo, Guarani-SP e Paysandu, e recém contratado técnico do Paragominas. Como seu clube anterior, a Tuna Luso, não joga mais este ano, ele próprio estaria parado se não fosse pela proposta que recebeu.

Por isso, uma vaga na série D é vital para todos os que vivem de futebol. Mesmo sem televisionamento, a quarta divisão dá visibilidade local, atrai patrocinadores, empolga a torcida e gera compromissos até pelo menos agosto - ou outubro, para os melhores times, quando é jogada a fase final. É a única forma de gerar receitas no segundo semestre.

Essa pressão gera todo tipo de conflito, muitos deles disputados fora do campo. A poucos dias do começo da Série D, o Remo, outro tradicional clube do Pará e uma das maiores torcidas do Estado, entrou na Justiça desportiva reivindicando para si a vaga paraense na Série D. A lógica do Remo é que o time teve mais pontos que o Paragominas na tabela geral do campeonato estadual - mesmo não tendo chegado à final - e portanto mereceria a disputada colocação na quarta divisão.

Para aumentar ainda mais o clima de rivalidade e incerteza, o Remo anunciou a contratação de Charles Guerreiro, técnico que comandou o Paragominas à final do estadual paraense e ex-jogador do Flamengo. Muitos na imprensa local viram o investimento como o sinal de que o Remo conseguiria a vitória no tapetão. No mesmo dia do anúncio, o Paragominas contra-atacou com uma nova proposta a Charles Guerreiro e o convenceu a ficar no clube.

Mas Charles Guerreiro chegou em Paragominas e alegou que não havia clima para ficar, diante da reação hostil da cidade à sua volta, que considerou seu primeiro gesto uma traição. E novamente decidiu ir para o Remo, desta vez em definitivo.

Na quarta-feira à noite, um dia antes da viagem de 2,500 km para o primeiro compromisso na Série D no Acre, o Paragominas ainda não tinha garantias da Justiça desportiva de que jogaria o torneio. Quando os jogadores treinavam no gramado, a torcida - que comparece em bom número até para os treinos - comemorava nas arquibancadas a notícia ouvida recém no rádio: a justiça desportiva havia acabado de negar o recurso ao Remo, confirmando a vaga do Paragominas.

"Indeferido! Indeferido!", gritavam os torcedores, com a mesma intensidade de um gol. "O Remo tá fora!"

No gramado, os concentrados jogadores começaram a sorrir, entre eles Aleílson, que marcara dois dos três gols contra o Remo que colocaram o Paragominas FC na final do Paraense e na Série D. Os advogados contratados pelo clube acabavam de marcar o gol final e decisivo, no tribunal, que garantiu mais quatro meses de salários, jogos e tranquilidade a todos e suas famílias.

Muito chão, pouco dinheiro - 03/06

Em meio às milhares de notícias esportivas publicadas no ano passado, duas aparentemente sem conexão chamaram a minha atenção. A primeira foi sobre o salário de Neymar. Nosso maior craque - na época ainda atuando no Brasil - ganhava até R$ 3 milhões mensais no Santos, segundo especulações da imprensa esportiva.

Para muitos, a notícia era animadora - um sinal de que o futebol brasileiro evoluiu e finalmente atingiu um patamar onde é possível segurar (ao menos por alguns anos) nossos grandes talentos competindo com os milionários clubes europeus.

A segunda notícia era bastante perturbadora. A imprensa brasileira noticiou uma estatística da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) de que 82% dos jogadores de futebol do nosso país ganham até dois salários mínimos.

Ou seja: um Neymar pagaria o salário de mais de 2 mil jogadores de futebol, ou 201 times completos, mostrando que os enormes contrastes econômicos do nosso país se repetem também no nosso esporte favorito.

Nesse mesmo Brasil, em que é possível construir ou renovar 12 estádios para a Copa do Mundo, gastar R$ 2,2 bilhões para refazer o Maracanã e o Mané Garrincha e onde alguns grandes clubes já conseguem achar condições de bancar salários de dez dígitos, existe um contingente gigante - mais de 24 mil jogadores - que não vão participar nem de perto da grande festa do futebol em 2014.

Os números e a realidade desses atletas mostram que o Brasil talvez seja o país do futebol, mas está longe de ser o país dos jogadores de futebol. A vasta maioria dos futebolistas brasileiros não conhecem fama, conforto ou a Europa.

Eles vivem uma carreira curta, em que mal conseguem pagar as despesas de suas famílias. Abdicam do convívio diário com suas esposas e filhos ─ pois não têm condições de trazê-los nas inúmeras mudanças de clubes e cidades feitas a cada ano. Encaram o desemprego a cada seis meses, quando os campeonatos estaduais param, e a maioria dos clubes - sem torneios para disputar - precisam fechar suas portas por meio ano.

E vivem também um presente duro ─ sem direitos trabalhistas, nem união da categoria e com atrasos de salários ─ e um futuro impossível, sem planos de carreira e sem chances de poupar para a aposentadoria.

Para mostrar melhor como funciona este outro lado do futebol, resolvemos fazer algumas reportagens neste ano sobre a Série D, a quarta divisão do Campeonato Brasileiro, um torneio que oferece algumas pistas sobre a realidade da maioria ─ e não apenas da ponta de cima ─ dos jogadores, dirigentes e técnicos brasileiros.

A Série D impressiona pelo tamanho: é a única divisão do campeonato nacional com representantes de todos os 27 Estados brasileiros. São 40 times, de Caxias do Sul (RS) a Boa Vista (RR). Ela é um retrato mais fiel e abrangente do esporte nacional, afinal o futebol não é praticado apenas no Sul, no Sudeste, na Bahia, em Pernambuco e em Goiás ─ as únicas regiões e Estados representados na primeira divisão.

É um campeonato sem televisionamento e de longas distâncias e viagens ─ nesse momento, escrevo estas linhas dentro de um ônibus entre Paragominas (PA) e Belém, onde estou acompanhando a longa jornada do representante paraense para seu jogo de estreia.

São mais de 2.500 km de estrada e avião até Rio Branco, no Acre, onde o time enfrentará o Plácido de Castro. Ambas as equipes participam pela primeira vez do Campeonato Brasileiro de futebol - o jogo de estreia terminou com empate de 1 a 1.

Nosso personagem principal nas reportagens é o jovem Paragominas Futebol Clube, time registrado junto à CBF há menos de um ano, e que já conseguiu alguns feitos históricos. O primeiro foi conquistar a segunda divisão do campeonato paraense de 2012. O segundo foi derrotar o Remo em um dos turnos da primeira divisão do estadual ─ assegurando a vaga na Série D e na Copa do Brasil de 2014.

O Paragominas, como muitos de seus rivais na Série D, vive neste outro lado do futebol brasileiro. Sem grandes contratos de televisão ou patrocínios de peso, o clube ─ com seus 45 jogadores, dirigentes e funcionários ─ batalha para conseguir ascender na competitiva estrutura esportiva brasileira.

O clube atravessa um bom momento, capaz de pagar salários decentes e em dia. Mas os desafios futuros também são enormes. É preciso bancar os pesados custos de operação, administrar uma categoria de base, trazer reforços e sobreviver da única forma possível: ganhando partidas e títulos, e avançando para divisões superiores.

Muito se fala sobre o momento de oportunidades históricas que o futebol brasileiro está vivendo às vésperas da Copa do Mundo. A lógica é que com o legado dos novos estádios e a modernização nas gestões dos clubes, o Brasil tem hoje a chance de dar uma virada e deixar para trás anos de desorganização e deficiências fora do campo.

Isso talvez seja verdade para o futebol de elite. Mas e os demais 82%? Será que também terão uma oportunidade para dar a sua virada histórica?

Será que clubes novos que estão surgindo agora no outro lado do futebol brasileiro, como o Paragominas FC, vão participar também da grande festa?

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