PUBLICIDADE

Terra na Copa

Investigada por Malvinas, Argentina pega Suíça em templo de São Jorge

1 jul 2014 - 09h33
Compartilhar

Uma enorme escultura metálica de São Jorge foi preparada pelo artista Gilmar Pinna para fazer parte do estádio do Corinthians. Batizada de "Cavaleiro Fiel" para minimizar a rejeição de evangélicos, a peça só poderá ser instalada após o adeus da Fifa, mas é no templo do santo guerreiro que a Argentina lutará por sua classificação às quartas de final da Copa do Mundo.

O confronto com a Suíça não será tão emblemático quanto foi aquele com a Inglaterra, no Mundial de 1986, com a memória da Guerra das Malvinas fresca. Ainda assim, um triunfo na casa do padroeiro dos ingleses - que compartilham sua devoção a Jorge com os corintianos - será bastante festejado por aqueles que chegaram às semifinais pela última vez em 1990 e tão pouco vêm festejando."Desde aquela Copa, os êxitos esportivos (e não só esportivos) têm sido escassos na vida argentina. Por isso, torna-se mais compreensível que haja retornos frequentes a esse momento de glória, o qual se busca restaurar. Daí as numerosas referências de conotação religiosa e mitologizada. Maradona é ‘Dios’, Messi é o messias", diz o historiador Ernesto Bohoslavsky, doutor em América Latina contemporânea e professor da Universidade Nacional de General Sarmiento, em Buenos Aires.

A vitória por 2 a 1 na Cidade do México, há 28 anos, representou "uma vingança simbólica e não sangrenta do conflito armado" de 1982, como explica Bohoslavsky. Foi justamente nas quartas de final que Maradona mostrou técnica absurda e malandragem idem, marcando um golaço histórico e um de mão idem. "Um gesto robinhoodiano, de um ‘trickster’", avalia o professor, especialista na história das direitas na Argentina, no Chile e no Brasil.

Ganhar roubado da Inglaterra era mais saboroso aos argentinos, para quem as Ilhas Malvinas lhe haviam sido roubadas por ela. Maradona se tornou o herói nacional por excelência, mas, desde então, a seleção alviceleste só comemorou as conquistas da Copa América em 1991 e 1993. Na briga com os ingleses pelo arquipélago, também não houve sucesso.O assunto continua atual, como ficou claro no amistoso da Argentina com a Eslovênia, há pouco mais de 20 dias. Os jogadores da formação sul-americana entraram em campo, em La Plata, com uma faixa que dizia: "As Malvinas são argentinas". O caso rendeu uma investigação da Fifa, que proíbe "ações provocativas e agressivas" e coíbe mensagens políticas nos jogos de futebol.

A investigação provavelmente não dará em nada - como a maioria das anunciadas pela entidade -, mas reforça a atualidade da questão. O governo de Cristina Kirchner, no que os críticos enxergam como uma tentativa de desviar o foco dos problemas vividos pelo país, vem adotando uma política internacional ativa em torno do tema. O Reino Unido se recusa a discutir sua presença no território, que chama de Ilhas Falkland.

"Eu concordo com a necessidade de abordar o conflito em todos os espaços de diálogo internacional disponíveis. Além disso, acho que a decisão de converter essa causa em uma questão latino-americana é acertada, já que recorda a presença de uma potência militar extracontinental nessa parte do mundo", defende Ernesto Bohoslavsky.No último dia 10, Cristina inaugurou o Museu das Malvinas, em Buenos Aires, com o seguinte discurso: "Acabar com o último vestígio do colonialismo inglês sobre o Atlântico sul deve ser uma política de Estado que nenhum governo deve abandonar". Foi duramente questionada pelas famílias dos mortos na guerra de 1982 por causa da instalação do museu no local onde funcionava a Esma, espécie de Dops argentino, usado pela ditadura local para torturas e assassinatos.

As críticas sofridas pela presidente têm semelhanças com aquelas dirigidas ao ditador Leopoldo Galtieri, acusado de medida populista ao buscar o controle das ilhas em 1982. Começou em abril a guerra pelo arquipélago, ocupado pelos ingleses em 1833. Os argentinos, que julgam ter direito sobre o espaço desde sua independência, acabaram derrotados em junho, rendendo-se com mais de 600 mortos.

Se não chegou a 300 o número de britânicos que morreram nas batalhas, chamou a atenção a disputa por um espaço em que pouco existia além de pinguins - atualmente, eles ainda são muito mais numerosos do que os menos de 4.000 habitantes. "É a briga de dois carecas por um pente", sorriu o escritor argentino Jorge Luis Borges. Hoje, existe cabelo, na forma de reservas petrolíferas descobertas.

Em 2012, ano em que o conflito completou três décadas, o Reino Unido deslocou um navio de guerra para as Malvinas, movimentação que gerou revolta na Argentina e provocou reação na comunidade internacional - o Brasil apoiou o bloqueio a embarcações com bandeiras das Ilhas Falkland. Membro do exército, o príncipe William foi enviado à região para exercícios militares como piloto de helicóptero.Irmão de William, o príncipe Harry visitou o Brasil para a Copa do Mundo, acompanhando a desastrosa campanha da Inglaterra, eliminada com um ponto ganho. Tivesse ido a algum jogo da Argentina, teria ouvido o grito "el que no salta es um inglés", tentativa da torcida de empolgar a si própria com algo equivalente a "quem não pula é inglês".

Houve até uma briga no Rio de Janeiro entre argentinos e chilenos, que cantavam: "As Malvinas são inglesas". Chile e Argentina também têm um histórico complicado entre si e estiveram perto de entrar em guerra em 1978. Nas Malvinas, o ditador chileno Augusto Pinochet ofereceu apoio explícito para a aeronáutica e para a marinha dos britânicos. O encontro na Copa e as provocações reacenderam velhos ódios.

Corinthians e Inglaterra salvaram santidade de Jorge

As Ilhas Malvinas não estavam em guerra em 1969, quando o papa Paulo VI promoveu algumas mudanças na Igreja Católica. Em um episódio conhecido como "cassação de santos", reordenou o calendário litúrgico e tirou da lista oficial nomes como o de São Jorge, celebrados só em algumas regiões do planeta.

O corintiano Dom Paulo Evaristo Arns, que logo se tornaria o arcebispo de São Paulo, procurou o pontífice. "Santo padre, nosso povo não está entendendo direito a questão. São Jorge é muito popular no Brasil, sobretudo entre a imensa torcida do Corinthians, o clube de futebol mais popular de São Paulo", disse, de acordo com relato em um de seus livros.

Segundo o brasileiro, a resposta foi imediata. "Não podemos prejudicar nem a Inglaterra, nem o Corinthians", afirmou Paulo VI, ordenando que o guerreiro da Capadócia voltasse a figurar nos calendários brasileiro e inglês. "Caso contrário, seremos culpados de um equívoco."

"O futebol é uma forma de processar, encenar e reproduzir diversas tensões sociais e étnicas nacionais e internacionais. As canções que os torcedores argentinos entoam nas arquibancadas expressam com muita claridade algumas dessas tensões e medos", avalia o historiador Ernesto Bohoslavsky, apontando entre elas "as derivadas do conflito com a Inglaterra".

Se de fato o futebol pode ter implicações que vão além de um triunfo esportivo, como aconteceu e 1986, o Mundial de 2014 oferece uma oportunidade à Argentina. Não haverá uma vitória direta sobre a Inglaterra, que não conseguiu nada além de um empate com a Costa Rica e deixou o território brasileiro rapidamente, mas a turma de Messi está viva na tentativa de reviver dias mais gloriosos.

Um passo importante poderá ser dado no estádio de Itaquera, o templo do mesmo São Jorge cuja cruz está na bandeira inglesa, o estádio do Corinthians, clube assim batizado em homenagem ao inglês Corinthian Football Club. Ganhar as Malvinas está mais complicado do que ganhar a Copa ou do que ganhar os corintianos, como mostram os uniformes alvinegros dados de presente a Mascherano, Messi e Alejandro Sabella.

Pondo de lado seu doutorado em América Latina contemporânea e deixando claro que sua previsão não é a análise de um historiador, Ernesto Bohoslavsky aposta em um triunfo na batalha de Itaquera. "Eu sou argentino, mas também tenho um coração corintiano pelos amigos que me contagiaram com o amor ao Timão. Espero que o estádio seja testemunha de uma nova vitória da seleção argentina."

Fiel lamenta ausência de Tevez em Itaquera
A saudade de Carlitos não será matada nesta terça (foto: Marcelo Ferrelli/Gazeta Press)

 

A torcida do Corinthians, que já fez ser ouvido seu "Timão eô" durante a Copa do Mundo, seria mais Argentina se Carlitos Tevez estivesse na equipe alviceleste. O atacante deixou saudade na Fiel, sendo o principal jogador alvinegro na conquista do Campeonato Brasileiro de 2005.

Apesar de sua excelente temporada na campeã italiana Juventus, ele não foi convocado por Alejandro Sabella - auxiliar técnico em parte da passagem do atleta pelo Parque São Jorge. O motivo seriam problemas com o craque Lionel Messi, o que foi negado pelo ex-corintiano.

Sejam quais forem as razões, o jogador que conquistou os torcedores alvinegros pelo estilo maloqueiro não estará em Itaquera para ouvir "volta, Carlitos" ou algo parecido. "Com certeza, rolaria aquele ‘doutor, eu não me engano, o Carlitão é corintiano’. Mas o Sabella é uma besta", reclama o vendedor Marcelo Morales, que, apesar da burrice apontada no treinador, apoiará a Argentina no setor sul da arena da zona leste de São Paulo.

 
Gazeta Esportiva Gazeta Esportiva
Compartilhar
Publicidade