Jogo de futebol no Sudão inclui soldados e armas
As ruas se esvaziam ao pôr do sol. Soldados com rostos contorcidos saem às ruas, literalmente milhares deles, usando uniformes camuflados em uma profusão de cores - azuis, verdes, cinzentos e marrons. Portam cassetetes, tubos plásticos e fuzis AK-47, bem como velhos cajados de madeiras. Os grandes caminhões do exército, com rodas de mais de um metro de altura, bloqueiam as principais vias. Não parecia um grande evento esportivo, e sim mais um golpe de estado.
» Camarões renova com treinador francês para a Copa do Mundo
» Ministro da Justiça da Irlanda pede repetição de jogo
» Imprensa destaca classificação "sofrida" do Uruguai a Copa
» "Podemos ir longe", diz presidente da Federação Francesa
Dois dos times de futebol mais poderosos da África, Egito e Argélia, estavam se enfrentando na noite da quarta-feira por uma vaga na próxima Copa do Mundo. Torcedores baderneiros, egípcios e argelinos, vinham trocando provocações o dia todo, percorrendo a cidade em furgões de cujas janelas, pendurados, acenavam bandeiras de seus países como toureiros tentando provocar o touro.
O comportamento parecia em geral brincalhão, uma típica provocação esportiva. Mas os sudaneses não estavam para brincadeira. O regime do país é militar, afinal; as crianças usam arremedos de uniformes camuflados como uniforme escolar e é comum que diversos conflitos internos grassem ao mesmo tempo (como acontece em Darfur e na parte sul do Sudão).
E é justo acrescentar que egípcios e argelinos são capazes de perder a cabeça por causa do futebol. Quase sempre que as duas equipes se enfrentam surgem brigas de torcida, e uma épica partida travada em 1989 ficou conhecida como o "Jogo do Ódio". O local da partida da quarta-feira era Cartum, a escaldante mas quase sempre anódina capital sudanesa (anódina, é claro, se você não for uma mulher que fala sem meias-palavras e termina presa por usar calças compridas em público).
Era difícil conseguir ingressos, mas não impossível. Em Cartum, é proibido beber. Mas vender ingressos como cambista não parece ser crime, porque consegui comprar três ingressos de arquibancada por US$ 20 cada, depois de uma pechincha longa e ruidosa realizada bem diante de cerca de 50 integrantes da polícia de choque.
Chegar ao estádio foi mais difícil do que chegar a Darfur. Quatro horas antes do jogo, todos os lugares já estavam ocupados. A polícia estava até contendo a torcida do lado oposto do Nilo, a quarteirões de distância do estádio localizado em Ondurman, a cidade gêmea de Cartum.
"Você é egípcio?", perguntou um policial, e depois acenou com o cassetete para a área em que os torcedores egípcios estavam acomodados.
A partida transcorreu em alta voltagem desde o apito inicial, com o juiz aplicando um cartão amarelo por falta quase imediatamente, o que foi seguido por troca de empurrões e uma quase briga entre os jogadores. "Ah, isso está começando a ficar bom", disse sorrindo um sudanês que havia pago uma libra sudanesa (cerca de US$ 0,40) para acompanhar a partida em um televisor.
O Egito era o favorito entre os apostadores, mas os sudaneses pareciam estar torcendo pela Argélia, supostamente o time mais fraco. "Esses egípcios são tão arrogantes", disse Mohamed Naim Suleman, um estudante proveniente de Darfur.
A Argélia marcou primeiro, com um tirombaço que chegou a furar a rede, no final do primeiro do primeiro. O time egípcio, mais experiente, continuou a atacar e quase conseguiu empatar o jogo diversas vezes. Mas isso não aconteceu, e a Argélia venceu por um a zero. "Nós não estávamos concentrados na partida", resmungou um engenheiro egípcio que havia pago US$ 700 por uma passagem aérea até Cartum mas terminou chegando tarde ao estádio. (Na verdade, ele chegou meia hora antes do jogo, mas era tarde demais, e assistiu à partida em um telão montado em um parque.)
O engenheiro terminou por aceitar a derrota, e por fim seus compatriotas também o fizeram. Não houve tumultos generalizados. Os soldados e os policiais voltaram a embarcar em seus caminhões, observando a torcida atentamente. Uma brisa quente, proveniente do Nilo, varreu as ruas agora silenciosas, e a noite tomou conta da cidade.
Tradução: Paulo Migliacci ME