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Por retorno à “Terra Santa”, San Lorenzo pede apoio a Francisco

24 jul 2013 - 10h04
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João Paulo II pediu perdão por diversos erros cometidos pela Igreja Católica ao longo da história --- como a Inquisição, que torturou e matou milhares de pessoas consideradas hereges. Caberá a um de seus sucessores, esperam os torcedores do San Lorenzo engajados na volta ao local que chamam de "Terra Santa", auxiliar na reparação de outra falha histórica.

O papa Francisco é argentino e torcedor da equipe azul-grená. Presente no Brasil em sua primeira viagem oficial ao exterior, o sumo pontífice ainda não tem marcada uma passagem por seu país, mas, quando chegar lá, ouvirá um pedido de ajuda daqueles que, como ele, não podem apoiar o time no Gasómetro há mais de 30 anos.

Chamado assim por sua estrutura semelhante aos gigantescos depósitos de gás liquefeito existentes na época de sua inauguração, em 1916, o estádio recebeu seu último jogo em 1979 e foi vendido pelo clube sob coação da ditadura e por preço irrisório. O principal palco do esporte argentino durante várias décadas foi abaixo para que se colocasse em prática um novo plano urbano, com duas ruas cruzando o terreno.O San Lorenzo recebeu US$ 900 mil de uma empresa-fantasma e passou a atuar em estádios de outras equipes até a abertura do Nuevo Gasómetro, em 1993, no bairro de Flores. O plano urbano nunca saiu do papel, e o espaço acabou sendo comprado em 1983 pelo Carrefour, que até hoje tem na Avenida La Plata uma de suas unidades.

Apesar das cores iguais às do clube, o supermercado nunca foi plenamente abraçado pela comunidade de Boedo. Ao menos os torcedores mais fanáticos, sentindo-se os donos de direito do espaço em que ficava o velho Gasómetro, recusaram-se a fazer suas compras onde antes empurravam atletas como o ídolo Roberto Telch, "La Oveja".

Um ex-taxista é um exemplo dessa rejeição. "O passageiro queria entrar no estacionamento do supermercado, e eu me recusei, porque nunca tinha entrado. Palavra vai e vem, tivemos um desentendimento. Interveio um policial, que me deu razão. Não entramos. Isso faz mais de 20 anos, e eu nunca comprei nada no Carrefour", contou à Gazeta Esportiva Adolfo Resnik, hoje um jornalista e funcionário público de 51 anos.Resnik espera voltar a frequentar o local até 2016. Ele liderou o movimento que cobrou --- e conseguiu --- a aprovação da Lei de Restituição Histórica. Houve muita luta, desde a instituição da Subcomissão do Torcedor do Club Atlético San Lorenzo de Almagro, em 2005, até que o projeto fosse finalmente validado pelo Parlamento de Buenos Aires no ano passado.

O êxito foi "de baixo para cima", como se orgulha de dizer Resnik, e ainda não é completo. Mesmo sofrendo com o ceticismo e a falta de apoio inicial da diretoria do clube, os torcedores chegaram a colocar cerca de 100 mil pessoas na Plaza de Mayo em uma manifestação marcante. Por fim, estabeleceu-se uma indenização de 94 milhões de pesos (cerca de R$ 38 milhões, na cotação atual) a ser paga ao Carrefour pelo terreno.

Agora, o desafio é juntar a grana. Os sanlorencistas fazem questão de que a conquista seja popular do início ao fim e esperam arrecadar o valor necessário pelo programa por eles organizado. Os números não são precisos porque parte dos pré-inscritos ainda precisa confirmar seu pagamento, mas já foi assegurado algo entre 15 milhões e 20 milhões de pesos (R$ 6 milhões e R$ 8 milhões), perto de 20% do necessário. A expectativa é que as adesões aumentem no próximo mês, com o início do Campeonato Argentino.

Gente como o artista norte-americano Viggo Mortensen e ex-jogadores do San Lorenzo como Lavezzi e Romagnolli contribuíram. "Foram cifras muito significativas, mas o mais importante é o seguinte: temos de comprar 36 mil metros quadrados. É mais lindo ter 36 mil contribuições de um metro do que uma só de 36 mil. São bem-vindos todos os que compram muitos metros, mas é um movimento popular, feito pelo torcedor", reiterou o jornalista.

No caminho de volta à Avenida Plata, 1.700, a ajuda do papa pode ter bastante importância. Sócio 88.235 do clube, o homem antes conhecido como cardeal Jorge Mario Bergoglio tem entre seus bens mais preciosos um pedaço do velho Gasómetro. Sua nomeação no conclave de março já aumentou muito a visibilidade do projeto de retorno ao bairro de Boedo, algo que se tornaria ainda maior com uma mensagem explícita de apoio.

"Seguramente, uma palavra de alento dele pode ser muito importante nesse processo. Quando vier para a Argentina, vamos tentar contato com ele. Tínhamos uma possibilidade de acesso por meio do embaixador argentino, mas no final não foi possível. De qualquer maneira, com a paixão que tem pelo San Lorenzo, ele certamente terá contato conosco", disse Resnik.É uma boa oportunidade para minimizar a principal crítica apontada quando Bergoglio foi escolhido para suceder Bento XVI, sua suposta omissão no período da ditadura argentina, de 1976 a 1983. O papa Francisco, que nega ter sido conivente com o regime militar, tem a chance de desfazer a mudança de seu time do coração, forçada pelo então intendente da cidade de Buenos Aires, o brigadeiro Osvaldo Cacciatore.

Até o Carrefour ganhará clientes quando a volta a Boedo for concretizada. Inicialmente avesso a qualquer tipo de conversa, o supermercado está incluído no projeto do novo estádio, que será erguido com dinheiro do clube, dos torcedores e de patrocinadores interessados em colocar seu nome no local. O governo municipal de Buenos Aires fará investimentos no entorno.

"O Carrefour vai ficar com uma quantidade de metros menor, e vamos conviver todos. Vai ser um projeto muito forte, com áreas esportiva, comercial, cultural e social, algo muito forte na região sul da cidade, que vive abandonada. Já fiz duras críticas ao Carrefour, mas a lei foi sancionada e eles entenderam a importância do momento, é um momento de pacificação. A lei nos deu razão, e as coisas mudaram. De uma inimizade se passou a uma amizade", afirmou Adolfo Resnik.A alegria será tanta na abertura do estádio --- "o dia mais feliz da vida, esperamos que o coração aguente" --- que aquele mesmo taxista que se recusava a entrar no estacionamento do Carrefour comprará no antes odiado mercado a carne para o churrasco. "Pode ser. Com o sonho cumprido. Não somos rancorosos."

*Colaborou Bruno Ceccon, de São Paulo

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