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"Não nasci para lavar roupa", diz revelação da arbitragem

10 dez 2009 - 15h16
(atualizado às 16h23)
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O que mais irrita a bandeirinha Katiuscia Mendonça, revelação da arbitragem nos gramados do País, é o preconceito. Para a capixaba da cidade de Baixo Guandu-ES, nada que venha das arquibancadas afeta sua carreira e seu foco nos detalhes do jogo, mas a frase "Vai lavar roupa" mexeu com seu ego. A auxiliar acredita que a Copa do Mundo de 2014, que será realizada no Brasil, pode ser uma realidade para a arbitragem feminina no País do futebol.

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Confira a entrevista com Katiuscia na íntegra:

Terra Esportes: Qual o lance mais bizarro que já viu dentro de campo?
Katiuscia: No jogo do Coritiba, o cara foi bater o tiro de canto, foi chutar, escorregou e chutou a bola para lateral, a bola foi para trás. Nunca havia visto. Tive que tentar segurar a risada e ele também, mas não consegui. São lances que acontecem.

Terra Esportes: E a frase mais estranha que já viu um jogador falar para o outro?
Katiuscia: São sempre as mesmas. O que eu acho interessante é que eu achava que a equipe é unida e isso nem sempre acontece. O que não dá para aceitar é um jogador ofender um companheiro de equipe. Não consigo entender isso. Se fosse eu mandava os dois embora. Quando veste a camisa tem que se estranhar lá fora. Vejo muito time desunido.

Terra Esportes: Por que escolheu ser bandeirinha?
Katiuscia: Eu era atleta de futebol, mas como morava em uma cidade do interior não via muitos progressos nessa modalidade esportiva. Acabei machucando o joelho e fiquei dois anos sem poder fazer atividade física. Então a oportunidade que tive de novamente voltar ao meio esportivo foi com a arbitragem.

Terra Esportes: Como?
Foi um amigo meu. Na época tinha formado uma associação de árbitros de futebol. Ele me convidou para fazer parte da equipe. Então fiz dois anos de experiência e graças a essa oportunidade estou aqui. Sempre pensei em ser atleta de futebol. Desde pequena pratiquei esporte.

Terra Esportes: Você só trabalhou em jogos da Série B?
Katiuscia: Neste ano sim, mas eu só fiz o teste para Série B. Ano passado trabalhei em jogos da Série A, mas hoje para você atuar no Brasileiro tem que fazer o índice masculino. Esse ano só consegui fazer os 18 tiros (é preciso fazer 20 tiros para Série A), para trabalhar nas Séries C, D, Feminino, Copa do Brasil. E já estou me preparando para o teste do ano que vem. Tem que treinar muito, se dedicar e se Deus quiser eu volto à Serie A.

Terra Esportes: Consegue saber se o público está acostumado com mulheres? O número de gritos machistas pode ser considerado um medidor?
Katiuscia: Desde o ano passado é exigido de a mulher fazer o índice masculino (para os homens é preciso correr seis vezes 40 m no máximo em 6s cada vez. São 7 minutos de descanso e depois é preciso ir para os tiros de 150m. São 20 tiros em no máximo 30s cada um. De um tiro para o outro tem 45s de intervalo. Para as mulheres são os mesmos seis tiros de 40m em 6s02, também com intervalo de 7 min. Depois os 20 tiros de 150m terão que ser feitos em 35s, com 45s intervalo. Se você queima uma vez tem mais uma chance. Se queimar duas está eliminado), e a corporação já vê isso igual ao homem. Antes o homem via a mulher dentro de campo como beleza. E hoje não. Hoje o homem já vê a mulher como profissional dentro de campo. Acho que diminuiu esse preconceito. Sempre tem uma gracinha aqui, outra ali, mas faz parte do espetáculo. Logo no início eles falavam que eu tinha que lavar roupa. Isso me ofendia muito. Não nasci para lavar roupa. Dava vontade de responder "vou lavar sua roupa aqui no campo". Sempre tem gracinha, mas é só para provocar.

Terra Esportes: Já pensou em parar de bandeirar por causa das ofensas?
Katiuscia: Nunca. Cada ofensa que recebia me dava mais força para seguir em frente. São 12 anos de carreira. Graças às ofensas consegui chegar onde cheguei, mas ainda tem muito preconceito. Com os jogadores nunca recebi ofensa, nem pela federação. É mais nas arquibancadas mesmo.

Terra Esportes: Existem jogadores mais abusados que já te cantaram?
Katiuscia: Nunca recebi uma cantada e se receber vai ser num momento de brincadeira. Então temos que levar na brincadeira. Nem fora de campo. No meu local de trabalho não dou atenção para essas coisas.

Terra Esportes: Já saiu com dor de cabeça de um jogo por ter errado um lance crucial?
Katiuscia: Já fui para casa com dor de cabeça, mas sentimos quando a gente erra ou quando acerta. Como hoje os jogos são televisionados sempre temos um respaldo maior. Depois dos jogos as pessoas ligam e dizem "não, foi um lance difícil, mas você acertou" e quando erra é normal, coisa de 10 15 cm. Você não pode errar um lance ridículo, que todo mundo vê, mas lances pequenos eu já errei e isso é normal.

Terra Esportes: Como é a comunicação entre o quarteto de árbitros?
Katiuscia: Temos uma preliminar antes e o foco é o quarteto trabalhar junto. Temos que manter o foco e esquecer o público e os atletas para mirar em lances. Nem sempre temos o fone, raramente isso acontece. Mas o foco maior é o olho no olho. Prefiro contato visual porque aí você passa a conhecer mais o árbitro. Tudo que é muito moderno é complicado, vai que e não funciona na hora.

Terra Esportes: E quando vocês descem para o vestiário você vai para um vestiário separado?
Katiuscia: Hoje já está melhorando para nós mulheres. Todos os vestiários já têm um feminino e outro masculino. Descemos juntos, fazemos o que tem que ser feito, retornamos para conversar e saber o que erramos. É o mesmo vestiário, mas com banheiros diferentes.

Terra Esportes: Em sua preparação você costuma se maquiar e se embelezar?
Katiuscia: Gosto muito de me maquiar. Gosto de retocar, usar minha meia. A mulher tem que ser profissional mas tem que ser mulher. Não pode transformar uma partida de futebol numa pista para se mostrar. Quando lançou o uniforme feminino achei muito bom, porque o shorts-saia é confortável, o macaquinho também é confortável, e isso diferencia a mulher do homem. Odeio aquele short largo do homem. Tem que usar roupa de mulher, mas não muito abusada.

Terra Esportes: Como as pessoas te abordam na rua? É reconhecida?
Katiuscia: Na minha cidade sou ídolo. A maioria da população sabe que adoro esporte e eles me ajudam muito, principalmente o secretário do esporte, o prefeito. Meu Estado é pequeno, minha cidade também e tudo mundo te conhece. Mas isso é bom, é uma força positiva que eles passam para gente. Onde vou as oportunidades vão aparecendo.

Terra Esportes: Existe alguma torcida que pode ser considerada mais machista?

Katiuscia: Torcida machista depende muito da partida, quando requer mais resultado a partida fica mais chata, então você não pode perder o foco porque eles vão buscar argumentos para te criticar.

Terra Esportes: Quem é o melhor juiz do Brasil hoje?

Katiuscia: Não dá para dizer quem é o melhor. Cada um tem um lado melhor que o outro. Não dá para dizer que o Simon é melhor que o Gaciba ou o Héber, é um conjunto. Não tem árbitro ruim.

Terra Esportes: Você usa a Ana Paula Oliveira como exemplo? Seguiria o mesmo caminho dela?
Katiuscia: Ela abriu as portas para mulheres na arbitragem e é uma excelente assistente. Lamento de ela ter saído da arbitragem, agora se está certo ou errado o que ela fez eu não sei. Ela não conseguiu passar no teste e se ela tivesse conseguido ainda estaria com a gente. Mas eu não seguiria o mesmo caminho que ela. Esse ano, por exemplo, não consegui passar na Série A e isso é frustrante. Mas ao mesmo tempo foi o melhor ano para mim, então o fato de eu não ter passado não conta. As portas se abriram e eu agarrei a oportunidade. Se eu não passasse no teste, não teria seguido outro caminho como ela fez, ia me aprimorar ainda mais para depois passar. Acho que faltou um pouco de foco para ela. Deveria ter se esforçado mais. Quando a fama chega na gente às vezes a gente perde a cabeça. Não recrimino ela, mas meu foco é arbitragem.

Terra Esportes: Por que bandeira erra tanto impedimento?
Katiuscia: É o pior lance. Você não tem que pensar, ou marca ou não marca. É uma dedicação muito forte. Faço esse tipo de trabalho, principalmente impedimento de bola parada. Não se pode errar. Você tem que trabalhar em cima disso.

Terra Esportes: Qual é o treinador mais truculento?
Katiuscia: O Leão é o pior. Ele me ofendeu muito na final do Mineiro, mas eu fiquei tão tranquila porque estava muito consciente do lance e acho que ele se arrependeu depois (Na ocasião, Katiuscia anulou corretamente um gol de Diego Tardelli levando Leão à loucura). As palavras que ele usou foram muito fortes, mas não ligo para isso. A punição maior veio depois, que ele ficou fora muito tempo (Leão chegou a ser suspenso por 120 dias pelo STJD, mas cumpriu apenas 21) e acho que as coisas não são do jeito que ele acha que são.

Terra Esportes: Qual é seu maior sonho?
Katiuscia: Chegar à Copa do Mundo. Nunca pensei em chegar na Fifa, por morar onde moro. Quando comecei ouvi do meu marido que só SP tinha essas oportunidades, mas não quis. O presidente Sergio (Correa, presidente da Comissão de Arbitragem) me deu uma oportunidade que nunca vou esquecer. Se hoje tenho padrinho na arbitragem é o Sérgio. Estão fazendo um trabalho para que a mulher faça o índice masculino. 2014 pode ser uma realidade.

Terra Esportes: Ficou com medo de eu te perguntar alguma coisa?
Katiuscia: Nas fotos eu fiquei com medo porque não quero me expor. Quero ser reconhecida como assistente. Quero ser a assistente Katiuscia, representando meu município. As coisas estão fluindo para nós mulheres.

Bandeirinha luta contra o preconceito e quer mais mulheres trabalhando no futebol
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Foto: Reinaldo Marques / Terra
Fonte: Terra
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