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Olimpíada 2016

Risco e pressão: rotina de quem desafia remoções do Rio 2016

10 mar 2015 - 09h15
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"Nenhuma Olimpíada vale a vida de uma pessoa. Não acho que os Jogos valham mais do que a vida da minha filha". Marcelo da Silva Trindade é morador da Vila Autódromo, comunidade que existe desde a década de 1970 na zona oeste do Rio de Janeiro, bem ao lado do futuro Parque Olímpico, maior obra em construção para os Jogos de 2016.

A favela, onde viviam quase 600 famílias, está sendo desapropriada para obras que visam facilitar o acesso ao principal local de competições. Marcelo estava disposto a resistir e permanecer até o fim, mas no início de fevereiro teve de deixar a comunidade.

Casas sofrem com buracos e rachaduras
Casas sofrem com buracos e rachaduras
Foto: BBC News Brasil

Não foi uma opção: sua filha Beatriz, de 3 anos, quase foi soterrada pelos escombros das casas vizinhas. "Ela estava brincando na laje. Ouvimos um estrondo e ela veio correndo, desesperada", contou Marcelo à BBC Brasil. "As casas de dois vizinhos tinham desabado em parte da minha laje e poderiam ter atingido Beatriz", diz.

Os vizinhos de Marcelo haviam negociado com a prefeitura e aceitaram deixar a Vila Autódromo. Como o processo de demolição é gradual – tratores municipais primeiro fazem a "descaracterização" da casa, quebrando janelas e teto, para depois voltarem e finalizarem a derrubada – as casas próximas sofrem com rachaduras.

O caso de Marcelo foi além: seu lar começou a ruir. Ele chamou o Corpo de Bombeiros, que o aconselhou a deixar a residência. Sem ter onde abrigar a família toda, esposa, sogra e filha foram para a casa de um irmão em Jacarepaguá, enquanto ele precisou se mudar para longe - São João do Meriti, com a mãe. Ele agora negocia uma indenização do poder público.

A prefeitura afirma que as remoções da Vila Autódromo até o momento só acontecem em comum acordo com os moradores. "Ninguém está saindo obrigado. Estamos realocando as famílias por desejo próprio, só sai quem quer sair", garantiu à BBC o subprefeito da Barra da Tijuca e Jacarepaguá, Alex Costa.

No entanto, questionado se haverá opção de ficar na comunidade para quem não concordar em sair, o subprefeito foi taxativo.

Diversas casas foram destruídas por conta das obras dos Jogos Olímpicos do RIo 2016
Diversas casas foram destruídas por conta das obras dos Jogos Olímpicos do RIo 2016
Foto: BBC News Brasil

"Não. Não existe a possibilidade de não sair", diz. "Se precisar, a gente discute isso através da Justiça."

A prefeitura alega que parte da comunidade precisa sair porque ocupa a área de proteção ambiental da Lagoa e do rio Pavuninha. Há ainda as casas que estão no traçado da duplicação das avenidas Abelardo Bueno e Salvador Allende, a obra olímpica em questão.

Aos que não se encaixam em nenhum desses critérios, a prefeitura alega que “está oferecendo uma mudança para um lugar melhor, urbanizado, com área de lazer e várias opções de transporte”, e que os moradores que querem ficar “estão ocupando uma área pública sem esgoto e serviços básicos.”

Cenário de guerra

O cenário que se vê pela Vila Autódromo se assemelha ao de um pós-guerra. De cada quatro casas que estão de pé, outras três já caíram – a demolição gradual das moradias faz o aspecto visual ainda mais assustador.

Um bar no meio da comunidade foi derrubado, mas ainda é possível ver um pedaço do balcão e até a placa de preços das bebidas em meio às paredes caídas e os pedaços de cimento.

"Parece a Berlim de 1945, é um visual de escombros. De repente, você está andando e cai uma pedra, um reboco, uma parede", descreve Felipe Pena, diretor do documentário Se Essa Vila Não Fosse Minha, lançado em dezembro de 2014 sobre a situação dos moradores.

Nas casas que sobraram, sobram também rachaduras. Não há uma que não tenha essas marcas no concreto indicando que as condições de permanecer ali não são as melhores.

Os moradores também reclamam da poeira levantada pelos tratores que, segundo eles, traz doenças respiratórias às crianças.

Pelo menos três pessoas relataram problemas para a entrada de materiais de construção na comunidade. "Quando chega o carro das lojas, a guarda não deixa entrar. E às vezes você vai comprar e fala que o endereço é na Vila Autódromo, e as empresas dizem que se forem entregar aqui, serão multadas", contou um dos residentes.

Motivos

As tentativas de desapropriação se intensificaram com a Olimpíada, mas se inciariaram há mais de 20 anos, em 1993.

"Eles já tentaram tirar o pessoal daqui outras vezes, mas nunca foi tão intenso. No Pan (Pan-Americano de 2007), achei que conseguiriam, mas houve mobilização e a gente ficou", contou Maria da Penha, da Associação de Moradores.

Um bar no meio da comunidade foi derrubado, mas ainda é possível ver um pedaço do balcão
Um bar no meio da comunidade foi derrubado, mas ainda é possível ver um pedaço do balcão
Foto: BBC News Brasil

Em 1995 e 1998, os governos estaduais de Leonel Brizola e Marcello Alencar deram à população concessão do uso daquele território – primeiro por 30 e depois por 99 anos. Por conta disso, os residentes da comunidade afirmam que é ilegal a prefeitura os obrigar a sair de lá.

O poder púlico, no entanto, questiona a validade dessa concessão. "Esse documento é questionável juridicamente", afirma o subprefeito da região.

Pressão

A prefeitura deu duas alternativas para os moradores da Vila Autódromo: um apartamento em moradia popular a 1 quilômetro da região, o Parque Carioca, ou o pagamento de indenização a ser calculada com base em critérios da Secretaria Municipal de Habitação – que não respondeu sobre detalhes destes parâmetros.

Luiz Claudio da Silva, de 52 anos – 21 deles na Vila Autódromo – classifica a estratégia de pressão que tem sido feita para tirar os moradores como "terrorismo".

"É uma covardia do poder público usar o esporte para nos massacrar dessa forma. Eles fazem pressão psicológica, vão nas nossas casas para dizer que 'ou você aceita e sai, ou o trator vai passar por cima'."

Segundo moradores, o problema começa quando os agentes da prefeitura entram nas casas para tirar medidas. "A partir daí, eles ligam duas ou três vezes por semana, vão até a casa e pressionam de todas as formas para você sair", disse Sandra Regina Damião, que prometeu não deixar ninguém medir seu imóvel.

A prefeitura também estaria fechando o cerco para os comércios ilegais. "Antes não vinha ninguém aqui, agora todo dia tem agente da prefeitura pedindo alvará para qualquer tipo de comércio da comunidade. A situação é triste, você vê morador saindo, o comércio fechando", relata Sandra.

Sobre essas alegações dos moradores, a prefeitura afirmou que “não existe pressão". "As concessionárias de serviço sabem que estão sendo feitas mudanças na Vila Autódromo e têm ido lá constantamente para desligar relógios e aí acabam fazendo vistoria nas ligações existentes e fazem a operação 'caça a gato'", afirmou a prefeitura em nota.

Especulação

Para moradores, a motivação real das remoções seria outra. "A valorização dessa área é imensa. Um pedaço dessa terra vale muito dinheiro", disse Altair Guimarães, presidente da Associação de Moradores – ele já passou por três desapropriações ao longo de seus 60 anos de vida.

A administração municipal rebate críticas sobre especulação imobiliária.

"Não vai ser nada construído ali porque o terreno é instável. Eu não vejo dessa maneira, é uma melhoria, estamos levando as pessoas pra lugares melhores", disse o subprefeito, Alex Costa.

Favela, onde viviam quase 600 famílias, está sendo desapropriada para obras
Favela, onde viviam quase 600 famílias, está sendo desapropriada para obras
Foto: BBC News Brasil

Arquitetos da UFF e da UFRJ chegaram a elaborar um projeto de urbanização da comunidade chamado "Plano Popular da Vila Autódromo" – ganharam o prêmio Deutsche Bank Urban Age Award com ele.

Segundo o plano, seriam necessários R$ 14 milhões para trazer infraestrutura para a região e reassentar lá as famílias que estavam morando em áreas de risco ou preservação ambiental.

"Toda hora existem propostas com intuito de manter a comunidade, mas ali a obra é praticamente inviável economicamente porque aquilo é aterro, é difícil manter uma estrutura que o terreno não propicia. São válidos, mas aí é engenharia", afirmou o subprefeito.

Legado

Os gastos para realocar as famílias já ultrapassam R$ 115 milhões - R$ 105 milhões para construir moradias no Parque Carioca e pelo menos mais R$ 10 milhões considerando as indenizações pagas a somente 10 famílias até dezembro do ano passado.

A prefeitura não revelou o valor total de indenizações pagas até agora, mas moradores questionam o montante já pago e o valor vem sendo alvo de investigação pelo Tribunal de Contas do Município.

Para o subprefeito, os Jogos de 2016 vão deixar "um grande legado" para as 583 famílias que moravam na Vila Autódromo. "Dignidade, respeito com as pessoas e o legado da casa própria."

Segundo a subprefeitura da Barra, 344 famílias aceitaram morar no Parque Carioca e 108 negociaram indenização para deixar o local.

Outras 131 ainda estão na comunidade e, pelo menos 43 firmaram pacto com a associação de moradores para lutar até o fim pela permanência na Vila Autódromo.

"Não é só pela casa, é pela dignidade. Não acho justo que por causa de uma Olimpíada a gente tenha que sair daqui", concluiu Maria da Penha, uma das resistentes. "Esses 43 ainda vão dar muito trabalho ao prefeito", finalizou Altair.

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