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Como o gentil técnico do Leicester pode fazer história

Técnico do Leicester fala sobre a campanha que pode lhe dar o primeiro título nacional da carreira em uma das maiores zebras da história

12 fev 2016 - 09h27
(atualizado às 10h45)
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Foto: Lance!

Claudio Ranieri entra na sala e vai na direção dos jornalistas. Antes das perguntas, cumprimenta um por um com apertos de mãos. Deseja bom dia. Na primeira vez que fez isso, causou espanto. Reforçou a imagem de que o italiano de 64 anos era gentil demais para ter sucesso. Ainda mais na Inglaterra, onde as entrevistas coletivas geralmente se transformam em embates entre repórteres e treinadores.

- Isso é bobagem. Eu sei cobrar. Para ter sucesso no futebol é preciso ser uma pessoa rude? Não acredito nisso - disse o italiano, em entrevista para o LANCE! por telefone.

O desdém existe também porque, de fato, ele não é um vencedor dentro de campo. Tudo isso pode cair por terra em poucos meses. Ranieri está no caminho de protagonizar uma das maiores zebras da história do futebol europeu. O Leicester tem cinco pontos de vantagem na liderança do Campeonato Inglês e enfrenta o terceiro colocado Arsenal neste domingo. Desde que a Hellas Verona foi campeã italiana em 1985 o Velho Continente não vê algo tão surpreendente.

- Sempre querem achar um segredo. Não há. Nós jogamos com velocidade o tempo inteiro. Noventa minutos mais os acréscimos. Se não tem velocidade é porque os jogadores relaxaram e isso eu não aceito - completa.

O possível título do Leicester no torneio nacional mais rico do planeta é surpreendente porque não se trata de um clube em ascensão. Pelo contrário. Em fevereiro de 2015, a equipe estava virtualmente rebaixada. Salvou-se em uma arrancada inesperada na reta final. Manteve a mesma base do elenco para a temporada atual.

- Eu não quis chegar e mudar tudo. Não pedi várias contratações nem tentei começar o trabalho do zero. Não adiantaria. Não haveria dinheiro para trazer nove ou dez novos jogadores. Eu confiei no que me disseram e no que meus olhos viram. O time era bom. Tinha qualidade. Era questão apenas de mudar uma coisa ou outra - analisa.

Por sete milhões de libras (cerca de R$ 38,5 milhões), indicou a chegada do incansável atacante japonês Shinji Okazaki. Trouxe o zagueiro alemão Robert Huth, refugo de Chelsea e Stoke City. Apostou no desconhecido volante francês N'Golo Kanté.

A base já estava lá. O goleiro Kasper Schmeichel, o zagueiro Wes Morgan, o volante Daniel Drinkwater, o meia Marc Albrihgton e, principalmente, a dupla de atacantes Riyad Mahrez e Jamie Vardy. Ranieri credita parte do sucesso da campanha à mudança de posicionamento de Mahrez, que passou ser utilizado como ligação do meio com o ataque e se transformou no melhor jogador do Campeonato Inglês.

- Passei muito tempo procurando uma palavra para descrever o ambiente que encontrei no Leicester. Até que um dia, encontrei: elétrico. É um ambiente elétrico.

Com 12 pontos de vantagem para o Manchester United, quinto colocado, o Leicester está praticamente garantido na próxima Liga dos Campeões da Europa. Um feito que dará uma condição financeira diferenciada para o clube. Impensável até mesmo para a diretoria porque, ao chegar para negociar contrato, a única pergunta que Ranieri ouviu foi:

Se acabarmos rebaixados, você continuará conosco?

O italiano assumiu o cargo sob desconfiança geral. Afável, sorridente e sempre acessível, Ranieri não tem nenhum título de liga nacional na carreira. Isso apesar de ter dirigido Valencia, Atlético de Madrid, Roma, Monaco, Juventus, Inter de Milão e Chelsea. Seus melhores momentos foram a Copa da Itália de 1996 e a Copa do Rei de 1999. Antes de assumir o Leicester, o último emprego havia sido a seleção da Grécia. Foi demitido após derrota para as Ilhas Faroe.

- Eu me arrependo (de ter aceitado o emprego). Foi uma escolha errada que fiz. Não foi a primeira, mas eu deveria ter imaginado que seria difícil porque a Grécia precisa de um processo de reformulação e você não consegue isso trabalhando três dias a cada dois meses com os jogadores. E depois que saí eles não viraram uma potência, não é?”, questiona, deixando claro não se considerar culpado.

A imagem de Ranieri na Inglaterra ficou marcado pela passagem no Chelsea. Então no primeiro ano da “administração” de Roman Abramovich, o italiano conseguiu levar a equipe às semifinais da Liga dos Campeões da Europa de 2004. Empatando em 1 a 1 e com um a mais em campo contra o Monaco, ele mandou o time para o ataque quando poderia administrar o resultado. Perdeu por 3 a 1.

Era um casamento que não tinha como dar certo. O bilionário russo queria títulos a qualquer preço, de preferência com um técnico famoso e de personalidade forte. Descrição que não serve para Ranieri. Ao chegar a Stamford Bridge, ele quis sinalizar a ligação com o elenco ao abrir uma garrafa de vinho no vestiário e propor um brinde. Em italiano, disse que se todos trabalhassem juntos, atingiriam os objetivos. O francês Marcel Desailly fez a tradução para o inglês. Ou quase isso.

O treinador está propondo um brinde. Vamos fazer o que ele pede logo e poderemos ir para casa.

Os demais jogadores levantaram as taças.

No Leicester, Ranieri encontrou a confiança que buscava. Em parte, por compreender que não havia sentido ser rigoroso demais. Na primeira vez em que se sentou à mesa com o elenco, percebeu que eles comiam demais. Decidiu não falar nada.

- Guardei a informação. Poderia ser um trunfo para o momento de dar uma bronca. Até agora não aconteceu. A gente pode não estar em um dia bom. Acontece. Mas nunca param de correr. Merecem comer.

O Leicester correu mais do que os outros no início do campeonato e parecia que seria o novo cavalo paraguaio. Mas o cavalo não parou de acelerar. Vardy passou a ser um dos atacantes mais valorizados do futebol europeu e engatou sequência de gols em 11 partidas seguidas.

- Eu tenho de ser honesto. Nunca imaginei (que a campanha seria tão boa). Eu sabia que iríamos bem. Sabia que não poderíamos passar pela mesma situação da temporada passada. Mas não pensei que seria assim - confessa.

Ranieri não faz muita questão de passar a imagem de gênio do futebol, um revolucionário. Não explica táticas, 4-2-3-1 ou qualquer outra sequência numérica complicada. Ele confiou os nos próprios olhos. Percebeu a posição mais apropriada para cada um deles e colocou limites. A partir daí, era com eles.

- Os jogadores têm liberdade. Sabem o princípio do que eu quero. Entenderam qual a nossa estratégia. Fica mais fácil. Futebol é para ser aproveitado. É um misto de se sentir bem, ser feliz dentro de campo e não esquecer a seriedade porque o que acontece naqueles 90 minutos afeta a vida e o humor de milhares de pessoas.

Essa é uma boa razão para Ranieri exigir que seus jogadores não parem de correr. Por ter perdido partidas importantes, ele reconhece que o importante é ter a atitude certa. Mais de uma vez na temporada citou trecho do poema “If” (“Se”, em inglês), de Rudyard Kipling: “você pode encontrar o triunfo e o desastre. E tratar esses dois impostores da mesma forma.”

Já falou até sobre Kasabian, uma das bandas de rock mais conhecidas do Reino Unido e formada em Leicester.

“Eu sou o que sou. Não citei Kasabian para agradar. Ouvi a música deles e gostei. Se eu estou bravo, estou bravo. Se me sinto à vontade em algum lugar, isso fica claro”.

Claudio Ranieri está mais à vontade do que nunca.

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