Repórter assiste a 41 das 42 modalidades olímpicas
Uma odisseia carioca na Olimpíada do Rio
Tudo começou na tarde de 3 de agosto, na fila do lado de fora do Engenhão. Estava ali com ingresso nas mãos para ver a estreia da Seleção feminina de futebol, em jogo contra a China. A Olimpíada já dava a largada, antes mesmo da cerimônia de abertura, dois dias mais tarde. No meio da torcida, ainda na rua, via e ouvia vendedores ambulantes que também se prepararam para os Jogos. "Água e cerveja. Water e beer", anunciava um deles, de chinelo, bermuda, camiseta, e bastante criativo, e seletivo, na hora de dar o preço.
Na sequência, presenciei Agatha e Bárbara vencendo seu primeiro jogo na arena de vôlei de praia de Copacabana. Já no dia 7, bisbilhotei o time masculino de basquete, numa das arenas do Parque Olímpico, na Barra. Embora com a credencial de jornalista, não utilizei o transporte de imprensa. Peguei um BRT no subúrbio da cidade, saltei na estação Rio 2 e caminhei ao lado de centenas de pessoas até a entrada do santuário olímpico. Como ainda faltava uma hora e meia para o jogo com a Lituânia, parei num restaurante perto de um posto de gasolina.
Eu estivera ali no mês anterior. O buffet livre em julho saía por R$ 49. Agora, custava R$ 89. Desisti do almoço e fui ver o Brasil levar um passeio dos lituanos. A diferença chegou a 30 pontos antes mesmo da metade da partida. A fome aumentava, a surra no time de Nenê e Marcelinho Huertas era irreversível, e foi a vez de eu conhecer uma das lanchonetes da arena. Lá, uma garrafa de água mineral, de 500ml, custava R$ 8, e um refrigerante de 600ml, R$ 10. Dava para perceber a indignação de muitos torcedores com a tabela de preços.
No mesmo dia, fui também a um dos pavilhões do Riocentro para conferir Guilherme Toldo num jogo - isso mesmo, jogo - de esgrima. A torcida brasileira o incentivava contra o italiano Daniele Garozzo. Mas a pontuação indicava vitória fácil do esgrimista estrangeiro. Quando surgiu o grito “eu acredito” das cadeiras, a derrota de Toldo veio logo.
A expectativa pela primeira medalha de ouro do Brasil era evidente. Rafaela Silva superou uma, duas, três judocas e eu corri para a Arena Carioca 2. Naquele 8 de agosto, vi a expressão “sangue nos olhos” dela no tatame para ganhar, na final, de Dorjsürengiin Sumiya, atleta da Mongólia.
No mesmo dia, dei um pulo no Maria Lenk para ver a Seleção masculina de polo aquático enfrentar o Japão. Um jogão e o Brasil venceu bem. Havia ali uma expectativa inédita de medalha. Horas antes, passei pelo tiro com arco, no sambódromo, região central do Rio. Fiquei quase meia hora exposto ao sol do meio dia numa área reservada aos jornalistas. Era o único ali, o que me intrigava. Os atletas apontavam para o alvo e largavam a flecha. Demorei a entender que os demais colegas deveriam estar na ampla sala de imprensa, acompanhando toda a prova pela TV. Claro, como enxergar a mais de 100 metros de distância se o tiro foi bom ou ruim?
Eu ainda não tinha pego o ônibus da imprensa num “meeting point” em frente ao prédio onde moro, em Copacabana. Fiz isso apenas no quarto dia de Olimpíada. No local, havia um voluntário de fora do País. Ele me falou em inglês que estava pela primeira vez no Rio e disse de onde era, mas eu não entendi qual a sua nacionalidade. Não insisti, para não deixá-lo constrangido. Eu sabia que a Olimpíada recebia delegações de 206 países - e jamais tinha ouvido falar de vários deles.
Mas o objetivo ali era pegar o ônibus certo. Queria ir para o MPC - Centro Internacional de Imprensa. O rapaz me fez a indicação correta. Agradeci e nunca mais o vi.
Tudo isso para uma nova jornada no Riocentro. Fui lá conferir a primeira luta do pugilista Robson Conceição, que viria a ganhar o ouro dias depois. Ele desafiava Anvar Yunsov, do Tajiquistão. A torcida brasileira, em euforia, bradava para o visitante: "Uh, vai morrer!" No mesmo instante, surgiu no telão um casal de idosos com a bandeira do país asiático no colo, talvez parentes do boxeador. Os dois olhavam sorridentes para a reação do público e os aplaudia.
Deixei o boxe e caminhei para outro pavilhão do Riocentro, para assistir a uma final feminina de levantamento de peso. O que mais me chamou a atenção ali foi o modo como a torcida recebeu os árbitros, anunciados com pompa pelo locutor. Eram saudados como se fossem os atletas. Por alguns segundos, imaginei qual seria a receptividade dada àqueles senhores se estivessem em um jogo de futebol no Brasil. Já estava no meio da tarde e ainda havia tempo para uma outra investida. Ver alguns duelos de tênis de mesa, também no Riocentro. De perder o fôlego a partida entre uma japonesa e uma atleta de Singapura que não deixavam a bolinha cair e estonteavam qualquer um.
Mas o 9 de agosto ainda me reservaria um belo jogo entre a russa Kuznetsova e a inglesa Johanna Konta, na quadra principal do centro olímpico de tênis. Ali mesmo onde um silêncio comprometedor me revelaria em alguns segundos que eu estava impedindo a continuação do jogo por estar de pé (procurando meu lugar na tribuna de imprensa). Quando me ajeitei, o locutor agradeceu com um “obrigado” e eu me vi observado por todo o público. Fiquei estático por cinco minutos, vermelho da cor do copo do refrigerante que eu trazia comigo.
Debaixo de chuva, acompanhei parte do ciclismo de estrada na manhã seguinte no Pontal, Recreio dos Bandeirantes e, de lá, rumei para Deodoro, a fim de cumprir uma agenda que incluía provas de tiro esportivo, a final da canoagem slalom, com o brasileiro Pedro Silva chegando em sexto, e o jogo de rugby de sete, entre Brasil e Argentina.
A partida já tinha começado e eu, na sala de imprensa, escrevia algum texto e me atrasava um pouquinho. Em menos de 20 minutos, colegas fotógrafos passaram por mim comentando em voz alta: “Que humilhação, 31 a 0.”
Pois é, a Argentina fez isso com o time do Brasil e tudo em menos de 20 minutos. Fui poupado daquele vexame, mas deu para ouvir alguns dos nossos atletas, inconformados com o fiasco. “O placar não refletiu o que foi o jogo”, disse Lucas, um dos principais nomes do time brasileiro. “Como assim?”, pensei. Depois, com calma, assisti à vitória de Fiji sobre os Estados Unidos por 24 a 19.
A maratona continuava intensa e no dia 11 foi a vez de escolher o hóquei sobre grama, em Deodoro, para ver a Holanda vencer a Índia por 2 a 1. Esse esporte é outro sem nenhuma tradição no Brasil e dificilmente deve conseguir algo nos próximos anos. Dali, peguei o ônibus para o parque olímpico e o compromisso agora era com a seleção masculina de handebol. Num jogo espetacular, derrotou a Alemanha, na Arena do Futuro, e sinalizou que poderia disputar uma medalha.
Mas, o melhor ainda estava por vir. Era a disputa final na natação, nos 200m medley. Michael Phelps tentaria uma nova medalha de ouro e Thiago Pereira era cotado para brigar pela prata ou bronze. Havia silêncio no centro aquático, nos instantes que antecederam à prova. Na antevéspera, numa outra disputa ali, um áudio do locutor Galvão Bueno provocou a interrupção da largada e contrariou os nadadores. Agora não. Tudo pronto e ... e Phelps ganharia mais uma. Thiago ficou apenas em sétimo.
Depois disso, na manhã chuvosa do dia 12, acompanhei finais simples de remo, na Lagoa Rodrigo de Freitas e de lá segui para Deodoro, a fim de conferir o hipismo, em provas de adestramento. No fim da tarde, estava de volta à Barra e vi um show da francesa Marine Jurbert na ginástica trampolim.
A gripe batia à porta e eu ainda estava em débito com a vela. Optei então por ir até a Marina da Glória, no dia da disputa da classe Nacra 17, vencida pelo argentino Santiago Lange, em dupla com Cecília Saroli. A vela é um esporte muito dependente de imagens captadas por câmeras e lentes potentes e foi divertido ocupar parte da areia da Praia do Flamengo com um monte de gente comendo milho e olhando mais para o telão do que para a Baía de Guanabara.
Nesse tour por modalidades pouco badaladas no Brasil, o ciclismo de pista pedia passagem. No velódromo, o público interagia com as atletas numa prova final feminina, em que a holandesa Elis Ligtlee, contemplada com o ouro, chorava abraçada com parentes na divisória entre o local da disputa e a plateia.
Mas estava na hora de ver o badminton, esse estranho esporte de petecas voadoras e que ainda engatinha no Brasil. Num intervalo de 45 minutos entre uma e outra sessão, o público foi convidado a se retirar do pavilhão 4 do Riocentro. O ingresso não dava direito a duas jornadas. Com o local vazio, a locutora e animadora Priscila Vaz apresenta então o mascote Vinicius e pede em voz alta. “Vamos aplaudir, preciso do apoio de vocês.”
Eu contei apenas 36 torcedores nas cadeiras. Ninguém aplaudiu e Vinicius saiu de fininho. Mas, ainda assim, ela não desistiu. “Vamos lá, gente. Um viva para o nosso mascote.” De novo, nenhuma resposta. Mais meia hora e vejo a euforia de chineses com a vitória de um dupla feminina do seu país (Ying Luo e Y. Luo) sobre as norte-americanas Eva Lee e Paula Obayna.
Na corrida contra o tempo eu me deparava novamente com o hipismo, em Deodoro, desta vez para provas de saltos, competição muito mais emocionante que a de adestramento e onde toda atenção é redobrada para evitar a queda do cavalo ou do atleta (ou de ambos). Naquele 14 de agosto, porém, havia mais dois momentos especiais aos quais eu não poderia faltar. No meio da tarde, a dobradinha de Diego Hypolito e Arthur Nory na ginástica artística, um dos pontos altos do Brasil nos Jogos e que surpreendeu muita gente.
E depois, já de noite, a apoteótica performance de Usain Bolt nos 100m, no Engenhão. Claro, 9 segundos passam num piscar de olhos. Mas não há como se manter frio e distante diante daquele raio que faz o estádio tremer e leva milhares de vozes a gritar seu nome. Engraçado é se sentar ao lado de um locutor peruano escalado para narrar a prova. Ele berra e cospe de emoção: “Largou, lá vai, lá vai, ganhou, ganhou, ganhou.”
Voltando para Copacabana, a manhã seguinte parecia menos complicada. Pela minha agenda, deveria cobrir a maratona aquática ali mesmo, no bairro. Outro esporte que não pode dispensar o apoio de um telão. Só assim dava para saber que Poliana Okimoto, já na reta final, tinha chances de uma medalha. E ela subiu ao pódio com o bronze.
No Parque Olímpico, cheguei à arena de luta greco-romana sem saber nada sobre a modalidade e saí de lá sabendo menos ainda. Vi dois gigantes agarrando-se pela cintura e no meio deles um árbitro franzino, de cabelos brancos, que parecia mais preocupado em se proteger. Das cadeiras, um gaiato gritou. “Cuidado para não matar o velhinho.”
Mais alguns minutos e eu estava no Maria Lenk. Um vendaval atrapalhava a fase preliminar da ginástica de trampolim e atrasava a apresentação de alguns atletas. Notei a decepção do russo Ilia Zakharov com a pior nota de uma das baterias. Ele errou no salto e se chocou na plataforma antes de cair na piscina. Não sei se por culpa do vento.
Muitas vezes, entre idas e vindas, tive de correr literalmente para não perder o ônibus de imprensa que levaria os profissionais para determinada arena. Suava, espirrava e tossia. E foi nesse estado que vi a primeira medalha do canoísta Isaquias Queiróz, no Estádio de Remo da Lagoa. Depois, o baiano conseguiria mais dois pódios e saiu da olimpíada como novo ídolo do esporte nacional. A canoagem velocidade fazia história para o Brasil.
Cobrir e acompanhar uma olimpíada e não ver um jogo da Seleção feminina de vôlei do Brasil é uma heresia. Reservei a noite do dia 16 para isso. A seleção vencia a China com facilidade e, de repente, deu uma pane no time. As asiáticas ganharam e foi frustrante ver aquela equipe de ouro sair da competição nas quartas de final.
Ao redor do Maracanãzinho, voluntários indicavam que a melhor opção para o caminho de casa era o metrô, estação São Francisco Xavier – distante 30 minutos a pé do ginásio. Cheguei em Copacabana por volta das 2h da madrugada e às 6h já estava à espera do ônibus no ‘meeting point’. Aquela era a manhã escolhida para uma ida ao centro olímpico de golfe, no Recreio. Também debutava naquele esporte e gostei de ver as pessoas circulando pela extensa área, algumas de binóculos.
Mais tarde, estiquei até a arena do taekwondo e da luta livre e vi alguns combates. Nada comparável à oportunidade única de desfrutar das enterradas de Kevin Durant, do dream team dos EUA, na vitória de 105 a 78 sobre a Argentina.
A Olimpíada já apontava para o seu final e corri para ver a largada do triatlo, em Copacabana, na manhã ensolarada do dia 18. O início da prova é muito interessante. Os atletas mergulham e nadam por um quilômetro e meio e, em seguida, pegam suas bicicletas para um novo percurso de 38 quilômetros. Por fim, correm mais 10 mil metros.
Não tanto exausto como os 56 competidores da prova, mas já com as pernas bambas, deixei Copacabana para uma nova missão – ver o ciclismo BMX. O circuito, no Parque Radical de Deodoro, impressionava pela beleza e lá estava o brasileiro Renato Rezende tentando se classificar para as finais.
Ele teve três chances, três baterias. Na primeira, não foi bem. Na segunda, acabou prejudicado por um acidente à sua frente. Veio então voando para a apresentação final. A torcida tentava animá-lo. Foi quando alguém puxou das cadeiras o coro do “eu acredito!” – uma praga brasileira nos Jogos. Em poucos segundos, Renato sofreu uma queda e não teve como se recuperar a tempo. Estava eliminado.
O penúltimo dia não fugiu à regra. Muitas coisas a fazer, a começar pela entrevista pela manhã dos medalhistas de ouro Alison e Bruno (vôlei de praia) e Martine e Kahena (vela). A nova aposta era sair da casa do Time Brasil, na Barra, até Deodoro, a tempo de ver uma competição no centro aquático do pentatlo moderno. Por engano, fui parar na pista radical de BMX e canoagem slalom e quando cheguei à área do pentatlo, a prova já tinha acabado.
Parti então para uma nova escala na Barra da Tijuca. Na Arena Olímpica, a ginástica rítmica encantava com belas coreografias e a brasileira Natalia Gaudio fez bonito com sua fita verde e amarela ao som de Cidade Maravilhosa. Minutos mais tarde, estava de novo no Maria Lenk para apreciar a graciosidade dos movimentos da equipe feminina do Brasil de nado sincronizado.
O Brasil quebraria o tabu no futebol masculino e a presença no Maracanã era obrigatória. Mas, antes, voltei ao centro aquático do pentatlo moderno e vi o ucraniano Tymoschenko deixar para trás com folga todos os concorrentes de sua bateria, na prova de 200 metros, de nado livre. Para fechar o sábado (20), restava a mais incrível das experiências – ir ao deslumbrante circuito de ciclismo mountain bike, também em Deodoro, e aplaudir a sueca Jenny Rissveds, medalhista de ouro.
Li em algum lugar que os atletas da maratona, a prova mais nobre da olimpíada, passariam por Copacabana no domingo, último dia do megaevento. Liguei a TV para ver a largada no sambódromo. Foi quando ouvi que eles iam até Botafogo e de lá regressariam para o centro da cidade. Mais uma vez, saí de casa sem me dar conta se havia ou não fechado a porta.
Corri até o metrô e cheguei a tempo em Botafogo. Fiquei ali por quase uma hora, recostado numa das grades de proteção e imaginando se algum louco pularia a cerca para agarrar algum atleta, repetindo assim o gesto do ex-padre Neil Cornelius em 2004, com Vanderlei Cordeiro de Lima. A cada pelotão com suas passadas largas, a torcida se manifestava.
Os aplausos mais intensos, porém, estavam reservados para os últimos colocados. O atleta da Jordânia, Abu Drais, o lanterninha, e o do Camboja, Neko Hiroshi, o penúltimo, terminariam a prova quase 40 minutos depois dos três medalhistas. Durante boa parte do percurso, eles receberiam um prêmio original - o reconhecimento da torcida brasileira. “Vamos, meu filho, vamos Camboja!”, exultava uma senhora, com a bandeirinha do Brasil, e um olhar enternecido, como demonstração de solidariedade e compaixão.
Eu me distraía com aquelas reações e nem notava que àquela hora já deveria estar a caminho do Maracanãzinho, para a final do vôlei masculino. Em 40 minutos, ocupava o meu lugar para registrar a façanha de Bruninho, Serginho, Wallace, Lucas, Maurício Lipe e Lucarelli. A gripe tinha cor – era dourada – e agora atacava com ferocidade. Sem nenhum trauma. O médico já tinha indicado vitamina C e repouso. No que eu respondi. “Quanto à vitamina, ok.”
Poder acompanhar pelo menos um jogo, uma disputa, uma bateria, uma prova de 41 das 42 modalidades olímpicas no Rio não tem preço. Nem febre ou dor de cabeça que impeça.
A que ficou faltando? Hipismo CCE (Concurso Completo de Equitação). Quando cheguei lá, suado e correndo feito louco, a prova tinha terminado. Fiz fotos da área de competição, das barreiras de cross-country no terreno da Vila Militar, em Deodoro, sem ninguém por perto. Missão 99% cumprida. Resta agora aguardar 2020 para, quem sabe, eu preencher essa lacuna.